sábado

Trocar de pele...

É a metáfora de minha vida. Tem sido assim. Sempre.
Quando trabalhei no jornal lembro de uma vez em que um diagramador me chamou de “inoxidável”. Achei engraçado, gratificante, o adjetivo. Quem conhece as manhas de uma redação vai entender o que ele quis dizer. Em agradecimento, escrevi um poeminha... onde eu dizia que não era inoxidável. Ao contrário. Por força da necessidade, arrancava as minhas escamas nos dentes: “trocar de pele todos os dias é o que me faz sentir inteira”- o último verso, o único que consegui guardar na memória.
Daí, descobri que eu tinha uma fórmula íntima para conviver comigo mesma... mudar de pele. Mudar de lugar. Para poder justificar o fato de me sentir estrangeira em todos eles, até em meu próprio corpo... Mudar de casa, de vida, de cidade, de emprego, de cardápio. Como se existisse em mim essa eterna predisposição a ir embora. Diferente das pessoas que ficam e fincam seus pés na terra. Constroem casas, encaminham vidas. Meu processo vital, até então, é seguir. E ainda não sei quando será preciso parar.
Aqui em Brasília tenho exercitado esta faceta um tanto bruscamente. E não falo de minha epiderme frágil e clara despelando sob o sol do cerrado. Mas da camada que sobreponho aos meus ossos para ser, convincentemente, outra.
Na cidade dos ternos, dos cabelos escovados e dos scarpins, eu aprendo o jogo cênico das condutas. Retiro a armadura do armário – pois todos/as precisamos de uma armadura uma vez na vida. E afio a minha lança. Reconheço algo em mim que eu deveria saber que existia. Meu yang adormecido, convivendo em paz com o yin, que sempre ecoou em overdose nos meus gestos. Fico grata por mim mesma e por essas escamas que andei deixando além, ao longo de um vasto caminho. Uma sensação de acordar refeita. Como um Buda que desperta do sono de um jejum intenso ao desvelar a face do seu medo.
Não quero ser definitiva nem me decretar curada. Mas, comemorar o prazer de não ter arrependimentos e sentir, depois de tanto tempo, o coração aberto. Brasília sorri pra mim, no azul límpido do céu em contraste com os flocos amarelos do Ipê. Uma cidade com asas e angústias feitas de concreto. Com a maior concentração de pessoas solitárias por metro quadrado do país. E, ainda assim, não me sinto sozinha. Sinto presenças invisíveis, cristalinas, extracorpóreas... uma força estranha tem esse lugar. Que nada tem a ver com o poder e toda essa sorte de complicações que ele necessariamente evoca.

Sim, agora entendo que esta pele, mesmo descamada e revestida, é, e sempre foi, inteiramente minha.

12 comentários:

Sara Graciano disse...

Que ótimo texto para seu retorno por aqui. Brasília é uma cidade que gosto muito, ela guarda a minha irmã e mãe aí.

Mudanças são sempre boas. Que bom que te sentes bem aí.

Um beijo

Laura_Diz disse...

Que bom saber que está bem e que lindo texto. vc escreve mto bem. Boa sorte! acho que está tendo. que bom, fico feliz. Bjs laura

Anónimo disse...

Todos os dias trocamos um pouco de pele, nos refazemos... camadas novas se sobrepõem, algo do que tínhamos descama, e nos sentimos mais "em nossa própria pele", ou menos... Seu texto me fez lembrar do poema 'O Elefante', do Drummond, que é como eu aprendi a ver esta adaptação que temos de fazer ao mundo... Um poema que entrou muito cedo em minha vida.
Ainda bem que você voltou a escrever, espero que esteja gostando de Brasília, quase me mudei para aí este ano também, mas na última hora percebi que não poderia... Ainda não tinha chegado meu tempo de mudar de pele! Bem-vinda de volta, beijos

c. disse...

Ai, mulher, os teus textos me enlouquecem. Primeiro porque você consegue colocar poesia em todas as suas frases e segundo porque eu me vejo neles (identificação absoluta) - o que me dá a maior alegria, assim menos sozinha, sabe? Coração aberto em Brasília, aproveite bastante. Beijos grandes.

Palpiteira disse...

Maravilhoso! É assim mesmo, todos os dias, por toda a vida.
Bom domingo pra vc.

Anónimo disse...

Aprendi a trocar de pele, a me reinventar para sobreviver.
Às vezes, ainda arde.

Beijos e ainda não conheço Brasília.
A.i.n.d.a!

Anónimo disse...

Olá Dai:
Engraçado sempre tive a certeza dessa sua capacidade de trocar de pele e se transformar, seus textos sempre revelaram isso para mim, afinal de contas poucos são cometas e poucos sentem o puxar da gravidade....sim concordo é com o outro que aprendemos o que somos, não só pelas empatias mas tb pelas diferenças...rs...carregava comigo a certeza que vc ia voltar com tudo e por isso ansioso te relia à exaustão.

After you loose this skins..take a deep breath.

Grato!

S_E

Anónimo disse...

Partindo quantas vezes forem necessarias pra poder se encontrar.
E descobrir que o lugar secreto fica dentro de nos mesmos.
Lindas tuas palavras.
Voce sabe, sou fa!
Beijinhos

Anónimo disse...

Oi, Dai!!! Que texto belo!!! Como fico feliz com as suas palavras, com a singeleza da sua alma. Vc é certamente uma das pessoas mais lindas e mais queridas que eu tive a sorte de conhecer. Que Deus continue iluminando seus caminhos sempre.
Saudade grande, mas felicidade maior ainda em saber que vc está bem.
Beijão.

Anónimo disse...

Que Lindo!!!!!!!!Mas tem que ser muito forte e camaleoa para seguir adiante, não é??????

Tenho esse dom não, mas gostaria de ter......

Em Israel costuma-se dizer que o israelense é como uma fruta nascida no deserto. Por fora é aspero e por dentro e doce.

Tudo isso que você escreveu me fez lembrar disso..Como sempre esbanjando palavras, adorei! Não sumi mais é muito bom ti ver por aqui. beijos

Thaty disse...

Fico feliz em confirmar que Brasília sorri pra você. E quero completar: eu, Gu, Vítor e família completa também estamos sorrindo, tá??
Nossa porta está sempre aberta, basta entrar!
Beijocas

Ane disse...

Uau...
Eu podia ter escrito isso. Ou algo muito parecido.

Beijo, Sra. D.