Nesses tempos em que tudo parece errado a nossa volta, a única solução que vejo é pararmos de exercitar a outridade. Não, o errado não está fora. O medo não vem do outro. Nesse arquipélago imaginário, onde nos ilhamos no simbólico do dinheiro, da idade e da cor, não somos nós – que tememos pela invasão de nossas casas, que choramos quando um moleque nos carrega a bolsa ou enfia um revólver pela brecha do vidro do carro, que berramos de agonia quando arrombam nossa fechadura – os maiores atingidos.
Nós ainda temos o mínimo. Um teto. E essa pretensa condição de ilha.
Para cada mulher loura que tem a corrente laçada pelo pescoço, há milhares de crianças negras não alfabetizadas...
Para cada homem branco de gravata que tem sua carteira roubada, há mães que perdem cinco, seis filhos, vítimas das redes de tráficos - que não, não são sustentadas por meros consumidores, mas por toda uma teia social de um estado que permite que o autoritarismo de uma legislação figurativa seja argumento mais forte que a vida - que já nem sabem mais a densidade atingida pela dor. Extintas de qualquer rasgo de compreensão acerca desta realidade que as cerca.
Para cada surto de pânico que nos leva a um psiquiatra, há centenas de crianças que não chegam sequer aos doze anos. Catando comida no lixo, tendo seu sexo inocente posto à prêmio, ressequidas, sem afeto, sem educação, sem respeito, sem nada que lhes cultive uma alma com grandes vestígios disto que comumente chamamos de humanidade.
Para cada noite em que preferimos ficar em casa, há milhões de noites de mulheres desprotegidas em suas próprias casas, queimadas a ferro, seviciadas, espancadas, despidas de qualquer vestígio de dignidade por aquele que um dia lhes jurou amor. E inúmeros corpos que atravessam as noites, tocados, punidos e mutilados por quem lhes compra barato, sem saber quando poderão despontar para um novo dia.
Então, antes de choramingar no travesseiro, vamos vestir a carapuça.
Antes de acreditar no efetivo entusiasmo das doações de cestas básicas, do sopão no fim de noite, dos 10% na igreja, vamos nos sentir mais no outro. Eles somos nós. Afinal, quem chacinou nossos sentimentos? Quem bombardeou nossa identidade ao ponto de não deixar que ela mantivesse esse vínculo de igualdade? E se fosse o seu pai, sua mãe, seu filho? E se fosse você? Antes dos gritos de socorro, precisamos, mais que nunca, ser feitos/as de ouvidos.
* texto escrito em adesão à blogagem coletiva proposta pela Laura. Participem vocês também.
11 comentários:
Parabéns pelo texto, fiquei comovida...
Em nome da PAZ e rompendo o silêncio!!!
Cê
Bela iniciativa de vocês!
parabéns!
Ah, Dai, nem preciso dizer nada porque você já disse tudo. Você conhece o Rio, sabe bem como a gente experimenta a violência aqui diariamente. A quantidade de pessoas morando nas ruas, etc. Muita gente pensa a curto prazo, não quer saber da criança que não tem estudo ou da mulher espancada. Só quer saber de manter uma falsa segurança, dá nos nervos pra dizer o mínimo. Bom, não vou me alongar,porque esse assunto me tira um pouco do sério. Beijocas.
O pior preconceito é contra a pobreza. Beijus
De Fato este ranço do umbigo só serve para alimentar o que nos oprime, só nos unindo ao outro encontraremos o eco necessário para espantarmos de vez a cultura egoika que nos é imposta subliminarmente pelo sistema que ensina-nos a sermos cada um por sí, olho por olho e tapa na kara, sem um estado de ânimo firme, a mente clara e o amor pelo próximo não poderemos nos rebelar contra o espetáculo e o que nos oprime prometendo grana, bem estar e sorrisos brancos se formos obidiente s e serviçais a causa do tirano....Grande Texto Dai!
High on Rebelion!
S_E
Porra meu, adorei. Soco no estômago amiga.
Tks, ótimo texto.
bjs laura
Dai, como disse a Laura, um soco no estômago mesmo!
empatia, precisamos praticar.
bjs!
Forte e real. Belo texto.
Nem sei o que dizer.
Bjs
Nossa outridade, nossa alteridade anda tão distorcida, né? Sabe o que me deixa mais triste? É ouvir todos os dias aqui em São Paulo que esse nosso Outro tem que morrer, você já deve ter ouvido isso. Um rebelado, um ladrão, um menino que vive na rua e comete lá seus pequenos delitos - ou grandes , porque não importa muito o tamanho. Ouço de gente que se diz "esclarecida" e "estudada" frases como: a polícia tem que matar, o governo tem que matar. Parece que ninguém quer ver que a cada morte dessas, um pedaço de quem fica se vai. Um beijo, Dai, seu texto me fez chorar. De fato, dissemos coisas semelhantes, mas você com muito mais poesia.
E é por estas e outras que todas as noites, antes de dormir, agradeço por tudo que tenho e pela chance maravilhosa de nao passar fome, frio e por ter saude.
Coisas essas que em geral so nos lembramos quando perdemos.
Adorei teu texto.
Beijo
Menina, esse texto é digno de estar em uma Folha de SP ou um Estadão!
Mesmo.
Que bom ler você.
Que bom saber que pensa assim.
Enviar um comentário