Algumas pessoas deixam de existir em nossas vidas bruscamente, como um golpe de machado. Sua última recordação acaba por ser a rispidez fria da lâmina.
Há pessoas que se suicidam em nossas vidas. Saem de cena soterradas pelo peso de gestos de uma tonelada de torpeza ou suaves palavrinhas fincadas como agulhas no coração.
Sem mencionar o pior dos apartes: a traição, aquela, que todos viram e você foi a última a inteirar-se.
Lembro de uma morte dessas nos meus arquivos. Sua ocorrência encontra-se registrada em algum caderno velho, lembrança longínqua que me diz: sim, houve tal pessoa, mas meu senso de sobrevivência a excluiu solenemente do universo.
O sentimento daquela existência torna-se um dejeto que por vezes orbita a consciência, nada mais.
(Quando isso acontece, uma certeza: tratava-se de uma presença superficial, aquela que se apresenta apenas quando lhe convem ou necessita algo, sem cavar brechas para enterrar as miudezas, as jóias do cotidiano, o único que pode ficar da história de qualquer relação, seja de amor ou amizade, perdida.)
Tenho fantasmas que, se encontrar na rua, irei jurar que é apenas manifestação de mediunidade.
Há pessoas que se matam aos poucos, vão convalescendo, se distanciando um milímetro a mais a cada dia. Estas deixam lembranças que equivalem a um cartão postal ou um retrato na parede.
Há os que se matam com a indelicadeza da rejeição. Telefonemas não atendidos, emails não respondidos. Um belo dia constatamos que não existe mais qualquer vínculo que justifique a sua sobrevida.
Há os amores que insistimos em manter vivos. Entubamos, acoplamos aparelhos modernos, injetamos nosso próprio sangue, abrimos o peito e massageamos o coração. Até a dor daquele sofrimento prolongado se consumar, em falência múltipla dos órgãos ou eutanásia. Agonia insustentável. É uma das poucas mortes sentimentais para as quais reservamos um fio de esperança de ressurreição.
Hoje constatei que carrego em mim um cemitério de afetos vencidos.
8 comentários:
E o que fazer quando nao morre?
Quando nao some?
Quando nao passa?
Se acaso souber, por favor, me avisa.
Beijo
Escreveu pra mim? Não. Mas, você sabe, escreveu pra todos. Quem não tem um cemitério desses? Essas últimas semanas paguei caro por querer dar uma última chance a algo que nunca chegou de fato a estar vivo, a nao ser na minha imaginação. É assim que se aprende, é claro, mas ainda assim...
Ainda bem que você voltou, te ler é um privilégio. Beijos.
julie,
sei tanto quanto você. Ou melhor, não sei de nada...acho que passa, em algum momento, mas a ansiedade desnorteia de tempo e das estações dessa passagem.
camille,
mais vale ter tentado e ter perdido. é um privilégio te ler tb, mademoiselle.
Dai, ai ai bonito texto...
nós e nossos fantasmas. Queria ser do tipo que vira as costas e esquece. Eu tive uma amiga(nunca mais vi, foi morar na França) que dizia:"Homem é que nem biscoito, vai um vem oito" :) e ela conseguia, era loira, pernas grossas, não era bonita, mas charmosa.
Mandou eu pintar o cabelo e fazer musculação, era engraçada:) a gente cultua estes amores, este é o problema, eu sou a rainha, pode crer.
Bjs laura
Estou pensando em transformar meu cemitério em crematório, está ficando muito grande e ocupando muito espaço...
Amei seu texto. Posso reproduzir lá no Desenho?
É... quanta verdade neste seu belo texto... Como não se identificar de algum modo?
Não posso dizer que carrego um cemitério em mim, mas pelo menos um cadáver há.
Beijo.
putz...
há anos eu digo isso, sabe? mas vc menciona aqui um cemitério de pessoas que se matam. eu descofio que mato pessoas.
não sei se guardo a lista, acho não, acho que não guardo nada, talvez eu nem tenha o cemitério porque o crematório sempre me pareceu mais higiênico e prático.
mesmo assim, ler essas coisas me fez sentir... vontade de depositar flores em algum lugar, talvez.
beijo, Dai!
Muito bom!
Que surpresa boa ter descoberto seu blog hoje.
beijo.
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